
Dez feminicídios em quatro dias: o feriado que escancarou a falha do sistema
Seis mulheres assassinadas na Sexta-Feira Santa. Dez mortes até a segunda-feira, 21 de abril. O Rio Grande do Sul atravessou o feriado de Páscoa sob o impacto de uma sequência de feminicídios no RS que expôs um problema antigo: a rede de proteção não está dando conta do recado.
As vítimas foram identificadas como Raíssa Müller, Caroline Machado Dorneles (grávida), Juliana Proença, Jane Cristina Montiel Gobatto, Patrícia Viviane de Azevedo, Simone Andrea Meinhardt, Talia da Costa Pereira, Laís Malaguez Meyer, Leobaldina Rocha Lyrio e sua filha Diênifer Rauani Lyrio Gonçalves. Elas tinham entre 14 e 54 anos. Na maioria dos casos, os autores eram companheiros ou ex-companheiros.
Os crimes aconteceram em nove cidades: Parobé, Feliz, São Gabriel, Viamão, Bento Gonçalves, Santa Cruz do Sul, Pelotas, Serafina Corrêa e Ronda Alta. A concentração das mortes na Sexta-Feira Santa, 18 de abril, chocou até quem acompanha o tema de perto. O restante dos casos ocorreu entre o sábado e a segunda, feriado de Tiradentes.
A reação veio rápida. Na noite de terça, quase 200 mulheres se reuniram na plenária virtual “Todas Juntas Contra os Feminicídios”. A pauta foi direta: reforço imediato nas medidas de proteção, ações de prevenção contínuas e cobrança por coordenação estadual. O principal pedido foi a recriação da Secretaria Estadual da Mulher, com orçamento próprio e equipe técnica.
- Recriação da Secretaria da Mulher, com autonomia e metas públicas;
- Educação de gênero nas escolas, para prevenção desde cedo;
- Audiências públicas e mobilizações de rua;
- Mais abrigos e centros de referência 24h, integrados com Judiciário e Saúde;
- Programas de responsabilização e reeducação de agressores;
- Campanhas permanentes de prevenção e canais de denúncia acessíveis.

O que falta, o que pode mudar e os próximos passos
O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher formalizou um pedido ao Ministério Público e à Defensoria Pública para que proponham uma ação civil pública contra o governo estadual. A queixa central: ausência de políticas consistentes e de estrutura para proteger e promover os direitos das mulheres. Na prática, essa ação pode exigir, por exemplo, criação de vagas em abrigos, funcionamento contínuo de centros de atendimento, metas por região e transparência em orçamento e dados.
Sem uma coordenação única, a rede fica fragmentada. Um município tem abrigo, outro não. Uma comarca agiliza medidas protetivas, outra demora. O resultado aparece nas emergências dos hospitais e no plantão das delegacias: mulheres que tinham feito boletim de ocorrência, mas voltam para casa sem rota segura. Recriar uma secretaria estadual exclusiva ajudaria a dar direção, priorizar orçamento e articular Segurança, Saúde, Educação, Assistência Social e Justiça em um mesmo plano.
O que essa secretaria poderia tocar de imediato? Três frentes. Primeiro, fluxo de atendimento claro: da delegacia ao abrigo, do hospital à medida protetiva, com transporte garantido e orientação jurídica. Segundo, expansão de serviços: mais abrigos, centros de referência 24h e atendimento itinerante para áreas rurais e periferias. Terceiro, dados em tempo real: um painel público, atualizado, que permita detectar picos de violência, identificar “pontos quentes” e ajustar recursos rapidamente.
Prevenção também é política de segurança. Educação de gênero na escola não é debate abstrato: reduz a tolerância social com o controle e a ameaça, que costumam aparecer antes da agressão física. Capacitar professores, profissionais de saúde e policiais para identificar risco e agir rápido salva vidas. Programas de reeducação de agressores, quando bem estruturados e monitorados, diminuem a reincidência e tiram do ombro da vítima a responsabilidade de “negociar” sua sobrevivência.
A lei brasileira já dá ferramentas. A Lei Maria da Penha (11.340/2006) prevê medidas protetivas de urgência, que podem ser acionadas após ameaça ou violência. A Lei do Feminicídio (13.104/2015) agrava a pena quando o crime é motivado por violência de gênero, no contexto de relações domésticas e familiares, entre outras situações. O desafio no RS é tirar essas normas do papel com rapidez, inclusive à noite e nos fins de semana, quando muitas ocorrências acontecem.
Para familiares e vizinhos, sinais de risco não podem ser ignorados: ciúme compulsivo, perseguição, ameaças, posse de arma, histórico de agressões. Em emergência, ligue 190. O canal 180 orienta e direciona para a rede de atendimento. Delegacias especializadas devem ser a porta de entrada sempre que possível, mas qualquer delegacia tem obrigação de registrar a ocorrência e acionar proteção. Amigos e parentes também podem denunciar.
O movimento feminista promete manter a mobilização nas ruas e nos espaços institucionais. Cobram calendário, metas e orçamento. Querem audiência pública, prazos para abrir vagas em abrigos, equipes 24h nos centros de referência e linhas de financiamento para municípios que estruturarem serviços. Sem recursos, avisam, o discurso não sai do papel.
O Estado também é chamado a padronizar procedimentos: medida protetiva com prioridade real, notificação automática à patrulha especializada, tornozeleira quando houver risco, botão de pânico e confisco imediato de armas em casos de ameaça. Em paralelo, campanhas permanentes em TV, rádio e redes ajudam a reduzir a subnotificação e orientam sobre como pedir ajuda.
As dez mulheres mortas no feriado não são números. São famílias que agora buscam justiça e uma rede que funcione para outras que ainda podem ser salvas. A pressão por respostas concretas deve aumentar nos próximos dias, e a efetividade virá do básico bem feito: coordenação, orçamento, serviço aberto quando a violência acontece e proteção que chega antes do tiro, da facada e do estrangulamento.